sábado, 12 de fevereiro de 2011

Para a Paula...

Está sentada à secretária. Tem à sua frente o monitor e o telemóvel dá sinal de mensagem. Desvia o olhar do ecrã para o objecto que a fez distrair da sua concentração. Paula leva muito a sério a sua missão. O seu rosto sério transmite essa competência profissional que a caracteriza. Equilibra o ar circunspecto com uma simpatia genuína que transparece na voz e no olhar sereno.
É uma mensagem da Bábá. Tirou 69% no teste de Matemática e está tristíssima. Particularmente porque lhe tinha corrido muito bem. Enquanto faz a chamada, pensa na sua filha Bárbara. Uma excelente aluna, para quem uma nota considerada apenas razoável é suficiente para a destroçar, dado o seu sentido de responsabilidade.
A conversa segue. Paula tenta confortar Bábá. “Acontece. Não tens que valorizar essa nota, que até não é má”. A tranquilidade e o carinho na sua voz transcendem o seu corpo. Paula visualiza a filha. Acentua o tom maternal, naturalmente carinhoso, para transmitir sensação de confiança. Sente que neste momento é crucial que Bábá veja a nota apenas como uma sarda solitária num rosto e que não chega, de todo, para caracterizar uma fisionomia.
“Acontece, filha. Vê o que fizeste menos bem. Às vezes basta ler mal uma frase, um número… Vais ver, da próxima vez essa nota vai-te dar a sensação de trampolim para fazeres ainda melhor. E mesmo que tal não aconteça, não há problema nenhum, como é óbvio. Tem calma querida, não fiques assim…”
Paula desliga o telemóvel e olha de novo para o monitor. Olha mas não vê. Fica pensativa. Ao mesmo tempo que está decidir o que fazer de seguida, relembra a conversa com a filha. Sabe que esta é muito responsável e que o seu esforço e empenho são genuínos. Fica triste pela Bábá, mas não pela nota. Amanhã trará outro excelente, nem sequer é algo que a preocupe. Sabe que os seus dois filhos são bons alunos e as preocupações, se as houver, ainda tardarão.
Sentada na sua cadeira, Paula espera um aluno para discutirem os trabalhos que têm sido desenvolvidos. Hesita entre fazer uma pausa para café com a sua colega do lado ou continuar à espera do aluno que entretanto se atrasou.
No seu gabinete, que partilha com mais três colegas, o silêncio impera. Neste momento estão todos ausentes. Respira fundo, como quem sente, ainda bem que estou só. Estar acompanhada não é algo que a aborreça. Às vezes, porém, não é fácil lidar com algumas pessoas que parecem espalhar a negatividade. Bom, não vale a pena pensar nisso. Há muito que fazer.
Volta a focar o monitor e os seus olhos castanhos e doces recuperam a vivacidade ao ler um dos emails. A sua mão direita clica várias vezes no rato para sublinhar as frases que vai lendo. Como se o que está escrito não fosse real e estivesse a viver um sonho muito vívido. Não tem a certeza se o que está a acontecer é mesmo real. As letras juntas em palavras revelam algo que parecia impossível. Ganhou um concurso! O espanto é surpreendente e o arrepio torna-se violento. Fica em êxtase. Será mesmo verdade? É a única coisa que lhe vem à mente. Será mesmo verdade? Não consegue acreditar.
Levanta-se e vai à janela que clareia o seu espaço. O sol teima em dirigir os seus raios noutras direcções. Que pena. Que interessa isso agora, contrapõe. Ganhámos um concurso! Ganhámos! Boa Paula. Afinal, não é impossível. Afinal fomos capazes. Afinal somos capazes!

terça-feira, 8 de fevereiro de 2011

Hoje...

Hoje, agora...
Aqui estou eu, aqui sou eu!
Nem sempre foi assim 
e sei que nem sempre assim será.
Hoje sei que estou aqui,
hoje sinto o agora.
Ouço-me!
Sinto-me!
Respiro-me!
Sorriu-me...
Sentada, estando aqui, não penso.
Sentada, respirando agora, só escrevo!
Escrevo para ti,
escrevo por mim...
Escrevo através de mim para ti.
                                                      Sofia Rodrigues

No final era o início

No final era o início.
Ali estava o que queria renunciar.
Olhou para o lado e ficou cego,
Não escutou o seu ego!

Mas o azul veio atrás
e o céu desceu aos seus ombros.
Ficou um peso sem pesar
e mergulhou para o mar.

Nunca mais veio ver-me, pensou.
Nunca mais soube de nada.
Ali ficou para sempre,
à espera do ausente.

Quando foi que isto aconteceu?
O que foi que se passou?
Quem era o horror,
quem foi que te magoou?

A culpa não é dele,
A culpa não existe.
Apenas a compaixão
de algo que foi em vão.

Aceita, meu amor
Tudo o que te dei.
Aceita, meu amor,
que eu partirei!

                           Sofia Rodrigues

terça-feira, 1 de fevereiro de 2011

Para a Inês

O coelho que queria ser guarda-nocturno



                O título desta história tem que ser corrigido. Eu não sou um coelho. Sou uma coelhinha, a Kika. Pelo menos é assim que a menina que cuida de mim me chama. O meu pêlo é macio e brilhante. O castanho e as manchas brancas dão-me uma cor alegre. A alegria é o tom mais forte da minha personalidade. Como da menina que trata de mim. O seu sorriso cativa os outros meninos. É muito bonita e encantadora. Inês é o nome dela. A Inês gosta muito de mim. Depois de fazer os trabalhos de casa da escola brinca comigo e eu brinco com ela. Saltitamos de degrau para degrau, sempre a subir. Depois, descemos a escadaria inteira em correria. Quando chegamos ao fim saltitamos de novo para cima. No topo das escadas íngremes e roxas está uma bela cenoura com ramo verde e muito carnuda para eu lanchar. Às vezes não lancho. Outras vezes tenho direito a três cenouras suculentas. Fico com a barriga cheia e um sorriso de orelha a orelha. Nessa altura tenho que fazer uma pausa e durmo uma sesta na minha casita. Foi construída com palha suave. É confortável e aconchegante. Posso dormir um sono descansado. Tão bem que me sinto aqui. Acordo ao som das notas melodiosas que se escapam das cordas do violoncelo desta garota de olhos negros e profundos com pestanas muito compridas. No outro dia despertei a sorrir com a sua música que enchia todas as divisões da casa de bonecas onde a Inês vive. As bonecas brincalhonas costumam fazer festas de aniversário e cantam os parabéns de vez em quando. Sopram as velas do bolo de chocolate e passam a tarde a cozinhar com a plasticina que se molda nas suas mãos de porcelana. É no quarto da casa que entro em silêncio bem de mansinho quando, no fim da festa, a Inês adormece. Tão frágil quando está na sua cama com lençóis azuis recheados de papoilas vermelhas com a sua fragrância de alfazema. As papoilas cobrem o seu corpo delicado como uma capa protectora. Salto para cima da estante repleta de livros coloridos que contam histórias de personagens fantásticas para sorrir. Fico de vigia aos seus sonhos. Sentada sobre as minhas patitas castanhas com manchas brancas, observo-a toda a noite. A Inês não sabe. Sou o seu guarda-nocturno. Esta a minha missão. É tão bom cuidar do seu sono profundo sem que dê conta que nunca está só.