Almofada



A almofada que queria ser um pássaro
Eu sou a almofada azul. Ou melhor, acabei de me tornar numa almofada azul. Até há 5 minutos havia 350 gramas de fibras poliéster, mas acabaram de me concluir rematando o tecido azul fino e macio para me dar volume e forma. Por isso, a minha identidade já não é ambígua. Sou uma almofada quadrada azul e macia. Mesmo assim, sinto que não sei quem sou, simplesmente porque não faço a mínima ideia do que vai ser de mim. Para onde vou e qual vai ser a minha função? Eu sei, não é suposto uma almofada ter este tipo de dúvida existencial, mas quando me vi enformada e com substância, foi inevitável questionar-me: e agora?
No momento imediatamente a seguir a ter sentido esta angústia, um homem de barba cerrada e barrigudo vestido com uma farda verde, que por sinal lhe fica muito apertada, levou-me para um caixote onde me deparei com mais 33 almofadas muito parecidas comigo. Já não estou só! Estamos todas muito juntinhas e o algodão que nos dá vida sente-se comprimido pela fronha vistosa que nos veste. O mais importante neste momento, é consensual entre todas, é que já temos um primeiro destino. Ouvimos outro homem de farda dizer que este carregamento está pronto para partir para a loja. Ouvem-se risinhos nervosos entre nós. Entre ficarmos nesta caixa e sermos compradas por um desconhecido, todas dizem que preferem a segunda hipótese. Por isso, o que nos ocupa agora é sonhar sobre quem nos irá receber.
Cá por mim gostava que fosse uma menina com muitos brinquedos, mas o melhor é não pensar muito nisso, porque se me calha um homem tão mal encarado e a cheirar tanto a naftalina como aquele que me deitou no caixote, vou ficar desfeita. O melhor é confiar na vida e deixar que ela se resolva por si própria. Vai tudo correr bem. Além disso, não estou sozinha.
Enquanto nos levavam no camião estrada fora cheia de engarrafamentos e depois de ter ficado atordoada com tanto buzinão, houve um momento que o silêncio era mais forte que tudo e deixei de estar atenta. Mais tarde, percebi que entrei na dimensão do sonho e quando dei por mim estava de novo num caixote. Só que desta vez, para além de mim e das outras almofadas empilhadas numa espécie de engradado, havia centenas de coisas expostas. Foi então que observei o local cuidadosamente e apostei que estava num hipermercado de coisas para o lar, por sinal cheio de gente com um ar esgazeado de quem não sabe o que fazer ao dinheiro. Que estranho. De repente, também me dei conta que sou uma coisa entre tantas iguais e que, tal como eu, cada objecto que está aqui não é único e tem tantos ou mais irmãos que eu. Sou uma almofada azul igual às outras todas e só me resta ter esperança que alguém repare em mim no meio de tanta matéria informe que nem consigo nomear. Para além do meu azul, sou capaz de ver branco, verde, amarelo, vermelho. São estas as cores que me ferem quando desloco o meu olhar para os recipientes vizinhos do meu. Quero acreditar que sou muito mais interessante que todas as outras companheiras para sair desta massa homogénea o quanto antes.
Mmmm, deixa-me ver…. tanta gente. O nosso preço deve ser atractivo, somos cada vez menos por aqui. Ui, cócegas. Alguém me está a apalpar e a fazer rir. Pára com isso, não aguento esses dedos a roçarem no meu tecido. Estou a ficar sem ar de tanto me rir. Uau. Estou num saco amarelo e já vi muitos amigos a serem levados daqui. Para onde me estarão a levar?
Voltei a adormecer. Não sei o que aconteceu depois da pancada que me deram, nem faço ideia do tempo que passou. Só sei que agora estou neste cadeirão vermelho e está uma mulher a olhar para mim com o ar de quem não sabe o que fazer comigo.
Enquanto me observa como quem avalia o meu potencial, aproveito para deslindar o sítio onde me encontro. Tendo em conta os livros empoleirados nas estantes e a secretária à minha frente, deve ser o local de trabalho da mulher que me comprou. O vermelho é a cor dominante deste lugar. Para além do cadeirão onde fui colocada em espera, as persianas, o candeeiro, a cadeira, o tapete e o vaso são todos dessa cor flamejante. O silêncio que se faz sentir cá dentro contrasta com a música dos pássaros lá fora. É que o cadeirão está junto à janela e consigo vislumbrar lá de fora o esvoaçar dos pássaros que não param de cantar. A vida deve ser lá fora. Eles voam e cantarolam continuamente. Está aqui um no parapeito da janela a olhar para mim. Porque será que está aqui? Voou sem dizer nada. Claro, porque haveria de se justificar a uma mera almofada fechada em quatro paredes sem saber o que lhe vai acontecer? De repente, esta gaivota branca e de bico amarelo, com a postura de quem tem o mundo a seus pés, suscitou em mim a curiosidade de voar em direcção ao céu azul longínquo. Quero ser como ela para poder voar até onde me apetecer ou até onde o vento me permitir. Mas não posso. Não tenho asas. Que pena, gostava tanto de poder fazer coisas diferentes. Pior do que isso, não posso fazer nada. Só posso estar aqui à espera. À espera que a mulher decida qual o meu destino e à espera que outro pássaro venha de novo perto de mim e cante para que me sinta menos só. Talvez assim possa continuar a sonhar em ter asas e voar até à exaustão.
Por ora continuo a sentir-me perscrutada e avaliada. O que se passa? As mãos da mulher estão a afagar-me. Tão macias e mornas. Agora dança comigo nos seus braços. Ao som da melodia de Wim Mertens, somos embaladas numa doçura que me tranquiliza e me faz distrair do céu azul que se vai transformando. O dia está a acabar com o sol a pôr-se e a confirmar-me que haverá outro amanhecer. Lá em cima, quase se pode adivinhar o pincel que alguém usa para mudar as tonalidades do céu, destacando a cor de laranja forte a contrastar com o cerúleo que se vai desvanecendo.
Já não me sinto tão triste por não ser um pássaro. Deve ser por causa da voz da mulher a cantar tão próximo de mim. Será que vai ser sempre assim ou será que me vai esquecer quando tiver outra almofada mais bonita do que eu? Bem sei, estou sempre a pensar no que vai acontecer depois, em vez de aproveitar e viver o momento em que estou. Como se esquecesse constantemente que na verdade é aqui e agora que devo estar e ser. Daí que tantas vezes não consiga ser feliz, simplesmente porque estou a desejar estar noutro local e noutro tempo que não aquele que passa. Digo passa, porque acabo por não vivê-lo de modo real.
Ao estar de volta ao cadeirão percebo que perdi uma oportunidade. Suspiro e volto a suspirar. À espera.