A Árvore




A árvore que gostava de ser A Árvore

Dizem que sou uma árvore monumental. Sou o plátano de Portalegre e sou conhecido pela minha longa existência. Fui plantado por um conhecido botânico, José Maria Grande, no rossio da cidade em 1838. Velho, dirão uns, antigo, dirão outros, magnífico dirá a maioria. Cá me vou aguentando desde então. Se passarem por Portalegre, ficarão surpreendidos com a minha sumptuosidade. Até eu fico espantado com a grandeza da minha copa frondosa e verdejante de Primavera com trinta e quatro metros de diâmetro. Tenho suportes que me ajudam a sustentar toda a minha envergadura e a ultrapassar as intempéries de Inverno. Mas isso faz de mim uma árvore ainda mais emblemática para quem me vê pela primeira vez.
Faço sombra a vários bancos vermelhos de madeira aqui no jardim, que normalmente são ocupados durante as tardes para jogos de cartas, beijos apaixonados, conversas e intrigas, ou apenas para me contemplar. Sei tudo o que se passa nesta cidade do interior. Se eu falasse a linguagem dos humanos, ficariam estupefactos com as histórias guardadas na minha memória. No dia em que compreenderem o significado das folhas pedunculadas a roçarem umas nas outras e o cheiro que espalho através do meu tronco enrugado e possante, poderão ter acesso a mil e uma aventuras. Por ora, conto apenas duas histórias interligadas que me marcaram para sempre. Enquanto as minhas raízes estiverem de boa saúde e conseguirem distribuir toda a energia derivada da fotossíntese não me esquecerei do Marco Rossi.
Trocavam cromos. Comparavam as cadernetas. O negócio era o da vida. Nessa noite ficaria decidido quem ganharia o prémio de coleccionador da semana, com o título de pavão. Como tal, o empenho e a concentração eram máximos. Perder um instante poderia resultar em deixar de ser o pavão da rua. Ser o pavão da rua era o sonho de qualquer um naqueles dias, percebi pelas conversações em surdina a que assisti nas vésperas desse encontro. Todos os gatos da cidade apareciam à meia-noite de sexta-feira para discutirem, debaixo dos meus ramos portentosos, quem tinha os cromos mais esquisitos para se tornar o pavão. O gato silva encontrou os cromos do Marco: dos Apeninos aos Andes.
Convém lembrar que as histórias do Marco foram muito famosas entre as crianças. Na década de 1980, muitas foram aquelas que sonharam com o encontro do Marco com a sua mãe. Lembro-me bem dos miúdos virem sentar-se num dos bancos que me rodeiam. Choravam copiosamente porque essa história era muito deprimente. Edmundo de Amicis, para inventar um drama infantil tão triste, deve ter tido um passado traumatizante. Os meninos e meninas que aqui se reuniam costumavam ficar horas a fio a discutir o destino de Marco Rocci, que viajou desde Itália até à Argentina depois de deixar de receber as cartas periódicas de sua mãe. Sem fim, essa história interminável, acabava por me fazer ficar emocionada até às lágrimas. Não eram bem lágrimas no sentido que os humanos estão habituados, mas as minhas folhas sacudiam-se e deixavam-se cair sobre o regaço das crianças. Com a sua queda eu desejava libertá-las por instantes dessa tristeza que as arrebatava. Ainda me lembro que houve duas folhas avermelhadas pelo Outono avançado que chamaram a sua atenção. Ficaram no meio da roda que formavam e foram suficientes para deixarem voar todos os marcos e macacos dóminos pousados nos seus ombros. A sua reacção colectiva foi extraordinária: ficaram estarrecidos a observar o voo dos cromos e voltaram-se de seguida para as duas folhas. Olharam em volta e qual não foi o meu espanto quando começaram a apanhar todas as folhas que se encontravam caídas. Esqueceram os cromos que fugiam empurrados pelo vento. Nunca mais vi nenhum desses cromos até sexta-feira passada.
Era a noite semanal destinada à discussão do cromo mais esquisito. O mio dos gatos informou-me que o cromo vencedor representava o famigerado encontro que nunca chegou a dar-se entre Marco e sua mãe. Como nunca ninguém chegou a assistir à cena com os dois juntos ficou claro que esse cromo era triunfante. E assim foi. O gato silva abriu a sua cauda de pavão e pavoneou-se no jardim durante o resto da noite. Os seus companheiros beberam a jeropiga acompanhada de castanhas assadas até ficarem ébrios.
Eu estava ali a observar, como sempre, e pela primeira vez na vida o meu tronco estremeceu desde as raízes até ao ramo mais alto. Senti-me pronta para voar tal era a força subterrânea que me percorria pela seiva. De repente tive um espasmo. Foi como que um travão à minha tremedeira. Esta convulsão assustou os gatos quase adormecidos depois de tanto comemorarem o rabo de pavão. Sumiram-se para debaixo dos bancos vermelhos para se protegerem dos suportes dos meus ramos. Os alicerces tombaram e rolaram pela praça atemorizando os poucos que passeavam nessa noite estrelada de Outono.
Fiquei parada no tempo. As minhas folhas gritavam como galinhas encalhadas. Bradavam sussurros de pavor e pediam-me para me deixar ficar. Foi com estranheza que senti a sua razão. Não podia voar, tinha que permanecer no rossio. Só assim teria oportunidade de viver intensamente o passar das estações do ano. Só assim poderia sorrir com as conversas dos gatos, só assim poderia continuar a emocionar-me com os jogos e risos das crianças dos outros. Só assim poderia continuar a ser o Plátano mais imponente e bem tratado.